As mídias de entretenimento (jogos, filmes, séries, músicas, Internet, livros, etc) são algumas vezes percebidas como negativas e prejudiciais para a sociedade. Alguns defendem que elas podem desperdiçar o tempo das pessoas e diminuir o desenvolvimento intelectual de crianças e jovens. No entanto, alguns teóricos defendem que essas mídias possuem um alto potencial para educar o público sobre vários problemas sociais, como por exemplo, planejamento familiar, saúde e estilo de vida, desenvolvimento infantil, moralidade e honestidade e religião (Brown, 2013; Singhal & Rogers, 1999).
Para eliminar a aparente dicotomia entre o entretenimento e a educação foi desenvolvida a estratégia de Entertainment-Education ou Entretenimento para a Educação (E-E). A E-E é o processo de propositadamente desenhar e implementar uma mensagem de mídia tanto para entreter como para educar, a fim de aumentar o conhecimento do público sobre uma questão educacional, criar atitudes favoráveis, e incentivar a mudança de comportamento. O E-E procura capitalizar o apelo da mídia popular para mostrar aos indivíduos como eles podem viver uma vida mais segura, saudável e feliz (Singhal et al, 2004).
História
A ideia de combinar o Entretenimento e a Educação não é nova. Culturas antigas já utilizavam anedotas e fábulas para transmitir o conhecimento através das gerações e ensinar lições morais. Porém, com o surgimento dos meios de comunicação de massa (cinema, TV, rádio) e sua popularização entre todas as camadas da sociedade, a estratégia de E-E ganhou nova relevância. Em 1969 a novela televisiva Simplemente Maria, exibida no Peru, provocou uma reação tão forte na sociedade que inspirou a Miguel Sabido, um produtor e escritor mexicano, a desenvolver uma metodologia educacional para as novelas.
Nos anos seguintes, a metodologia de Sabido foi disseminada para vários países e desde então vem sendo utilizada por várias organizações, para os mais variados fins sociais. Por exemplo, governos e organizações não governamentais têm ampliado seus esforços para utilizar as mídias de entretenimento mais populares com o fim de alcançar audiências que tem menos acesso aos cuidados de saúde, e que prestam menos atenção às mídias impressas, ou que tenham maior dificuldade de entender aquilo que leem (Singhal et al, 2004).
A Teoria de Sabido
Sabido encontrou nas novelas da TV um formato ideal para disseminar informações, conceitos e conhecimentos. As novelas são histórias dramatizadas exibidas de forma contínua e frequente. Essa frequência de exibição favorece a massificação de mensagens e na absorção de ideias e conceitos pelo público-alvo. Geralmente as novelas apresentam o confronto entre o bem e o mal, oferecendo a oportunidade de promover bons comportamentos e dissuadir os maus comportamentos. Para quem assiste, a novela ainda oferece oportunidade para uma fuga da realidade, para alívio emocional e também como fonte de informação e conselhos passados através dos atores (Singhal et al, 2004).
Contudo, na perspectiva da E-E as novelas convencionais sofrem modificações nos conceitos e propósitos. A E-E combina objetivos de entretenimento e educação, reforça valores, é moralmente coerente, é mais realista e está baseada num modelo teórico. As novelas e programas televisivos convencionais não têm como objetivo primário promover conceitos morais ou mudanças sociais positivas. Eles têm como objetivo atrair grandes audiências e vender a atenção do público para anunciantes. A E-E, entretanto, desenha as novelas e outros conteúdos prioritariamente para promover e reforçar valores sociais positivos. As iniciativas ou intervenções de E-E evitam confundir a audiência. Elas mostram que os comportamentos positivos são recompensados e os negativos, penalizados. A realidade é apresentada de forma mais próxima possível ao da audiência para que essa possa se identificar e se ver representada naquilo que é exibido (Brown, 2013). A Figura 1 apresenta mais claramente essas diferenças.

Sabido baseou sua metodologia em teorias de outros pensadores como, a teoria de Jung sobre o inconsciente coletivo, arquétipos e estereótipos e a Teoria da Aprendizagem Social de Bandura. Bandura acreditava que os indivíduos aprendem não apenas nas salas de aula, mas também observando modelos na vida cotidiana, incluindo personagens em filmes e programas de televisão (Singhal et al, 2004). A partir dessas perspectivas, a metodologia Entretenimento para a Educação traça como objetivo final alcançar o processo psicológico de modelagem que ocorre quando o indivíduo espectador assimila (absorve) as ações do outro. Em outras palavras, é quando o espectador não apenas imita ou se identifica com o personagem, mas permite internalizar as crenças e hábitos do personagem.
Nas estratégias de E-E, Sabido geralmente usava personagens que exemplificavam 3 tipos de modelos de comportamento: positivos, negativos e transicionais. Os modelos positivos representavam ou incorporavam os valores educacionais que a estratégia tinha como objetivo incentivar. Os modelos negativos representavam o comportamento dos que rejeitavam os valores ideais. Os modelos transicionais eram aqueles que ao longo da estória evoluíam do comportamento negativo para o positivo. Sabido utilizava um sistema de recompensas para enfatizar os objetivos educacionais. Quando um personagem apresentava um comportamento positivo, ele ou ela eram recompensados. Quando um personagem apresentava um comportamento negativo ou indesejável, ele ou ela eram punidos de alguma forma. Embora os vilões e maus certamente atraem a atenção da audiência, a estratégia de Sabido era focar nos modelos positivos que pudessem dar suporte aos objetivos de E-E.

Entretenimento para Educação e a religião
Como observado anteriormente, a E-E é uma estratégia que vem sendo utilizada efetivamente por vários tipos de organizações que tentam interferir em realidades específicas da sociedade com o fim de solucionar ou reduzir problemas sociais (prosocial). Contudo, resta a pergunta: a E-E poderia ser bem-sucedida ao ser aplicada para fins religiosos e espirituais?
A ideia de usar o entretenimento para fins religiosos não é recente. Miura (2017) encontrou registros do final do século dezoito que indicam que imagens de entretenimento popular eram usadas para a promoção do conhecimento das divindades budistas no Japão. Nesse período, profissionais religiosos ilustravam sátiras ficcionais (kibyōshi) apresentando as divindades em situações cômicas ou humoristas com o fim de atrair a audiência.

Berger (2016) comenta que em tempos mais recentes, “Hollywood produziu filmes para audiências de massa sem mensagem religiosa oculta, como ‘Ben Hur’ e ‘Os Dez Mandamentos'”. Brown (2013) por usa vez concorda que vários filmes de Hollywood carregam temas religiosos. Ele percebe que os temas espirituais estão cada vez mais presentes nos filmes de vários gêneros. “A maioria do entretenimento tem alguma visão de mundo filosófica ou religiosa embutida em seu conteúdo… a questão importante não é se um certo programa de televisão ou filme está dizendo algo sobre valores e crenças transcendentes, mas sim o que está ensinando”.
As pessoas são espiritualmente influenciadas pelos filmes, independentemente de serem ou não percebidos como religiosos.
William Brown
Brown (2013) acredita que há um grande potencial para o uso do entretenimento como forma de divulgação de valores e crenças que estimulam o crescimento intelectual e espiritual. Ele ainda acrescenta que existe uma audiência que busca conteúdos dramatizados para fins espirituais. Isso indica que a espiritualidade e o entretenimento podem estar intimamente associados.
Ao se referir especificamente aos filmes cristãos, Brown (2013) argumenta que eles são processados na mente das pessoas como as parábolas o eram no tempo de Cristo e que, portanto, podem criar diálogo sobre o cristianismo como promover a educação cristã. Ao citar como exemplo o filme A Paixão de Cristo de Mel Gibson o autor argumenta que milhões de pessoas alteraram alguma crença religiosa pré-existente por causa do conteúdo do filme (Barna, 2004). Cabe aqui a nota de exceção de que nem todo filme com uma temática bíblica pode der considerado um filme religioso e consequentemente gerar resultados espirituais positivos.
Bayo et al (2015) realizaram um experimento na Nigéria onde as mídias de entretenimento foram utilizadas para promover a unidade e tolerância religiosa numa sociedade com grande pluralidade étnica. Apesar de ter sido um projeto complexo, esses autores reconhecem que a religião permeia vários tipos de relacionamentos na sociedade e é um importante agente de socialização em escolas, ambientes médicos e instituições financeiras. O que os pesquisadores demonstraram através de sua experiência inovadora é que, ao discutir valores importantes através de um programa de entretenimento, as pessoas podem ser motivadas a fazer mudanças comportamentais em suas vidas.
Caso: os Adventistas e o E-E
A igreja Adventista do Sétimo Dia é considerada um grupo religioso conservador que apresenta um conflito histórico no uso das mídias visuais de entretenimento. No entanto, mais recentemente esse conflito tem diminuído, e a organização tem desenvolvido várias estratégias que envolvem a produção de programas de TV, filmes, seriados, documentários, jogos eletrônicos, clipes musicais e outros conteúdos visuais para os mais diversos propósitos (Ellis, 2019; Novaes, 2019).
Na América do Sul, a redução desse conflito é bastante evidente. Os adventistas têm investido na produção de filmes para fins evangelísticos, mas também para estabelecer diálogo com as novas gerações. Novaes e Magalhães (2020) desenvolveram uma pesquisa onde descrevem como a estratégia adventista de produzir conteúdos de E-E tem sido efetiva.
Para Novaes e Magalhães (2020) um dos motivos para que a estratégia adventista tenha obtido resultados positivos se deve ao fato de associar conceitos puramente religiosos com assuntos de melhoria social. Por exemplo, o curta-metragem O silêncio de Lara produzido em 2015[1], busca ajudar as vítimas de abuso sexual a externalizar seu sofrimento, denunciar o agressor e buscar apoio. A webserie, -10 A vida não é um jogo discute o problema do cyberbullying, bullying e depressão [2]. Além disso, a igreja lançou a plataforma de vídeos Feliz7play.com para agregar todas suas produções fílmicas dramatizadas e ficcionais.
Apesar dos adventistas sul-americanos terem sistematizado o processo de produção de filmes e outros conteúdos de EE, ainda é necessário o desenvolvimento de metodologias que possam permear a estratégia e orientar as produções a partir da medição de resultados e pesquisas.
Conclusão
A real e urgente necessidade das igrejas cristãs em reduzir o abandono das novas gerações de cristãos, bem como alcançar novos públicos exige o uso de estratégias e abordagens inovadoras, como o E-E. Uma estratégia de E-E serve para contextualizar a mensagem bíblica numa linguagem compreensível a todas as faixas etárias e classes sociais contribuindo na retenção dos membros e na atração de novos seguidores.
O uso do E-E certamente não é uma bala mágica que resolverá todos os problemas de abandono escolar ou da evasão jovem das igrejas; no entanto, pode abrir espaço para discutir questões e motivar mudanças de visão e comportamento.
Referências
Barna (2004). New Survey Examines the Impact of Gibson’s “Passion” Movie. Retrieved June 26, 2020, from https://www.barna.com/research/new-survey-examines-the-impact-of-gibsons-passion-movie/
Bayo, O., Babatunde, O., Oluole, A. (2015). Religion and media in a plural society: the Nigerian experience. Journal of Peoples’ Friendship University of Russia. Series: State and Municipal Administration, no. 3, 2015, pp. 65-79. Retrieved May 10, 2020, from https://cyberleninka.ru/article/n/religion-and-media-in-a-plural-society-the-nigerian-experience
Berger, P. L. (2016, July 13). Religion, education and entertainment. The American interest. Retrieved from https://www.the-american-interest.com/2016/07/13/religion-education-and-entertainment/
Brown, W. (2013). Sweeter than honey: Harnessing the power of entertainment. Brown, Fraser & Associates. Kindle Edition. ASIN: B00G1S2YPO
Ellis, L. (2019). Seventh-day Adventists and the movies: An historical and contemporary exploration of the conflict between Christianity and visual media. Ann Arbor, MI: Regent University.
Fetzer, J.E. (2003). Multidimensional measurement of religiousness/spirituality for use in health research: A report of the Fetzer Institute/National Institute on Aging working group. Kalamazoo, MI: Fetzer Institute: 11-18.
Miura, T. (2017). The Buddha in Yoshiwara: Religion and visual entertainment in Tokugawa Japan as seen through Kibyōshi. Japanese Journal of Religious Studies, Vol 44(2), 225-346. Retrieved from https://www.jstor.org/stable/90017697
Novaes, A. (2019). A. Seventh-day Adventist in the Digital Age. In A. E. Grant, A. F. C. Sturgill, C. H. Chen, & D. A. Stout (Eds). Religion online: How digital technology is changing the way we worship and pray.Vol 2, 93-108. Santa Barbara, CA: ABC-CLIO.
Novaes, A., Magalhães, C. (2020). Ficção audiovisual adventista. Um estudo netnográfico sobre as reações de internautas às produções da Igreja Adventista na plataforma de streaming Feliz7play. Revista Eclesiástica Brasileira, 80(315), 61-85. doi:http://dx.doi.org/10.29386/reb.v80i315.2022
Shultze, Q. (2000). Communicating for life. Christian stewardship in community and media. Baker Publishing Group. Kindle edition. ISBN 978-1-4412-0619-0
Singhal, A. & Rogers, E.M. (1999). Entertainment-Education: A communication strategy for social change. New York: Lawrence Erlbaum Associates. ISBN-13: 978-0805833508
Singhal, A., Cody, M.J., Rogers, E.M. & Sabido, M. (2004). Entertainment-Education and social change: History, research, and practice. New York: Routledge. ISBN-13: 9780805845532
Smith, B. (1975). Religion and social change: Classical theories and new formulations in the context of recent developments in Latin America. Latin American Research Review, Vol 10(2), 3-34. Retrieved May 6, 2020, from www.jstor.org/stable/2502757
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