INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA IGREJA ADVENTISTA: UMA VISÃO HISTÓRICA, TRADICIONAL E INOVADORA
A expressão “Inteligência Artificial” (IA)—tal como a conhecemos hoje—ganhou destaque nas publicações da Igreja Adventista do Sétimo Dia sobretudo a partir dos anos 1980 e, mais intensamente, nos anos 1990. Entretanto, referências a tecnologias precursoras, como “sistemas especialistas”, “computação avançada” ou “machine intelligence”, já apareciam em alguns periódicos antes de o termo “IA” se popularizar.
Este artigo faz um panorama do surgimento e desenvolvimento do termo IA no contexto adventista, mostrando como as primeiras menções refletiram uma mistura de visão inovadora (entusiasmada com as possibilidades que a tecnologia oferecia para a missão e para a gestão institucional) e uma visão tradicional (preocupada em manter a ênfase espiritual e o contato humano). Veremos que, ao longo das últimas décadas, a abordagem adventista evoluiu de uma posição basicamente questionadora para outra mais propositiva, sem perder de vista os riscos e desafios éticos e doutrinários que a IA pode trazer.
1. Surgimento Inicial (Anos 1980 e 1990)
Nos anos 1980, surgiram textos que, mesmo sem usar explicitamente o termo “Inteligência Artificial”, discutiam tecnologias de ponta:
- “Expert Systems and the Future of Adventist Education” (Journal of Adventist Education, 1987).
Um artigo sobre como “sistemas especialistas” poderiam automatizar tarefas repetitivas na educação superior, personalizando currículos e dando suporte a professores. A perspectiva era cautelosamente positiva, valorizando a otimização do trabalho docente, porém chamando atenção para a possível “despersonalização” do ensino cristão. - “Are Computers Taking Over?” (Adventist Review, 1989).
Reflexão editorial que levantava a preocupação de que programas “inteligentes” pudessem tirar o sentido de missão do ser humano ou mesmo “substituir o Espírito Santo” em aconselhamento. Havia um tom de desconfiança, embora reconhecesse os benefícios da computação na organização e controle de membros. - “Computers in Pastoral Counseling” (Ministry Magazine, 1992).
Observou-se o surgimento de softwares voltados a “aconselhamento automático”, descrevendo-os como aplicação incipiente de IA. A conclusão foi mista: úteis para triagem e organização de dados, mas nunca substitutos do contato pessoal e do discernimento espiritual.
A partir da segunda metade dos anos 1990, o tema IA apareceu com mais frequência, sobretudo atrelado à expansão do uso de computadores na igreja:
- “Machine Intelligence and Mission Work” (Adventist Review, ~1996–1997).
Discutiu a possibilidade de usar softwares de tradução automática de textos bíblicos em idiomas minoritários, ressaltando o potencial positivo de alcançar regiões remotas, ao mesmo tempo em que recomendava cautela quanto à precisão doutrinária. - “Electronic Evangelism or Automated Evangelism?” (Lake Union Herald, 1999).
Levantou a questão do quanto a igreja poderia “terceirizar” a pregação para as máquinas. Houve um viés mais negativo, reforçando que a tecnologia deve servir à ação humana, não substituí-la.
2. A Consolidação da IA (Anos 2000 em diante)
2.1. Menções anteriores a 2010
Antes de 2010, o vocabulário “IA” estava presente apenas em artigos pontuais. Um exemplo:
- “Artificial Intelligence and Intelligent Design”, por Eric Scott (Andrews University Seminary Studies, 2011), relacionou IA e teologia da criação.
Já em 2016, a revista Ministério (edição em espanhol) publicou “Inteligencia artificial: ¿Herramienta u obstáculo? El ejemplo de Samuel”, de Marcelo Díaz e Wagner Kuhn, analisando o potencial e os riscos tecnológicos, usando a história de Samuel como metáfora para a sensibilidade espiritual que não pode ser perdida em meio à automação.
2.2. Novos projetos e o boom de 2020
Com a crescente força das IAs, especialmente a partir de 2018, a Igreja Adventista passou a utilizar essas ferramentas diretamente na evangelização. Destaca-se a criação de chatbots bíblicos e sistemas que interagem com interessados em estudos da Bíblia:
- Em 2020, a Revista Adventista no Brasil publicou a reportagem “Inteligência artificial”, de Márcio Tonetti, detalhando o lançamento de um chatbot chamado “Esperança”, criado pela Rede Novo Tempo. A “robô” Esperança atendia milhares de pessoas por dia, tirando dúvidas bíblicas via WhatsApp. Durante a pandemia, observou-se um aumento de 271% no número de alunos interessados em estudos bíblicos.
- O tom foi positivo, pois a IA ampliou o alcance missionário sem desumanizar a relação, pois havia sempre um apoio humano pastoral disponível.
Ainda em 2020, foram relatados planos de aprimorar a IA para responder perguntas abertas, buscando conteúdos confiáveis nos acervos oficiais da igreja. Ficou evidente uma postura inovadora, enxergando a tecnologia como aliada providencial para a pregação em grande escala.
2.3. Discussões em 2023 e 2024: da cautela ao entusiasmo equilibrado
- “Preaching the Gospel in Times of Artificial Intelligence” (Adventist Review, agosto de 2023).
O jornalista Felipe Lemos abordou o encontro GAiN 2023 (Global Adventist Internet Network), no qual líderes de comunicação das Américas concluíram que “não podemos escapar da IA”. Devemos, portanto, usar essa inovação em favor da missão. Casos práticos: criação de materiais e pesquisas automatizadas, produção de estudos bíblicos personalizados e chatbots que levaram dezenas de milhares de pessoas à decisão pelo batismo. - “A Inteligência Artificial e o cristão: Desafios e oportunidades para a igreja” (Revista Adventista, 2023), por William E. Timm.
O autor ressaltou que as IAs generativas (como ChatGPT) causaram revolução em poucos meses, trazendo benefícios inegáveis na comunicação e alcance missionário, mas levantando questões éticas: produção de fake news, risco de superficialidade ou desinteresse no estudo pessoal da Bíblia e, em casos extremos, desemprego tecnológico. Timm chamou atenção para a responsabilidade e o equilíbrio cristão no uso dessas ferramentas. - Em 2024, editoriais como o de Juliana Muniz na Adventist Record apontaram um certo incômodo com o excesso de textos “robóticos”, alertando para a desumanização. Contudo, a mesma jornalista reconheceu que “a IA veio para ficar” e que é necessário aprender a usá-la de modo responsável, sem rejeitá-la.
Já o pastor Christopher K. Mukuka, na Ministry (fev. 2024), analisou como alguns associam a IA a temores proféticos. Ele defendeu uma postura bíblica e serena, lembrando que a proximidade da volta de Cristo não deve motivar pânico, mas sim esperança e preparo.
3. Perspectivas Positivas e Negativas
3.1. Visão Inovadora (positiva)
- Auxílio à missão: Chatbots, tradutores automáticos e sistemas de análise de dados ajudam a levar o evangelho a mais pessoas, em diversas línguas e contextos.
- Otimização administrativa e educacional: Ferramentas de IA podem agilizar processos em escolas, na gestão de membros e em diversas áreas, liberando mais tempo para atividades espirituais e pastorais.
- Alcance personalizado: IA permite adequar estudos bíblicos aos perfis individuais, tornando a evangelização mais assertiva e acolhedora.
3.2. Visão Tradicional (cautelosa)
- Risco de “desumanização”: Preocupação de que máquinas substituam o contato pessoal, afetando conselhos pastorais e a comunhão entre irmãos.
- Possíveis erros doutrinários: Traduções automáticas ou ferramentas de pregação podem gerar interpretações imprecisas, comprometendo a mensagem bíblica.
- Dependência excessiva: Temor de confiar mais na tecnologia do que no Espírito Santo, reduzindo a espiritualidade a procedimentos mecânicos.
4. Um Equilíbrio entre o Passado e o Futuro
A jornada adventista com a IA deixa claro que, ao mesmo tempo em que valorizamos nossas raízes e nosso legado de fé, devemos estar abertos à inovação. Desde a adoção cuidadosa de “sistemas especialistas” nos anos 1980 até os chatbots de evangelismo atuais, vemos uma tensão criativa entre a visão tradicional, que zela pelo contato humano e pela pureza doutrinária, e a visão inovadora, que reconhece as oportunidades tecnológicas para expandir a pregação do evangelho.
Conforme a IA se torna mais difundida e sofisticada, a Igreja Adventista do Sétimo Dia segue dialogando com esse avanço. Há grandes promessas de alcance, gestão e evangelização, porém também há chamados à prudência e à orientação bíblica e espiritual, para que a tecnologia sirva ao propósito maior de levar esperança ao mundo—sem jamais substituir o calor humano e a presença do Espírito Santo.
Conclusão
O termo “Inteligência Artificial” emergiu gradualmente no discurso adventista, primeiro de forma indireta (com foco em computação avançada), depois como conceito mais definido. Se, em seus primórdios, o uso de IA gerava questionamentos e temores, hoje vemos uma igreja mais consciente, que aprendeu a incorporar a IA à missão global, mantendo, contudo, a cautela para não reduzir o ministério cristão a um simples algoritmo.
Essa trajetória reflete o equilíbrio entre a visão visionária e a visão tradicional: uma abordagem que abraça as oportunidades oferecidas pela tecnologia, sem abrir mão dos valores espirituais, da comunhão humana e do cuidado pastoral. Como resultado, a IA tem se tornado uma ferramenta valiosa para potencializar ações evangelísticas e administrativas, desde que conduzida por princípios bíblicos e pelo desejo genuíno de servir a Deus e ao próximo.
Referências
- Adventist Archives (acervo oficial)
- “Expert Systems and the Future of Adventist Education”, Journal of Adventist Education, nov./dez. 1987, pp. 18–22.
- “Are Computers Taking Over?”, Adventist Review, fev. 1989.
- “Computers in Pastoral Counseling: Where Do We Draw the Line?”, Ministry Magazine, mar./abr. 1992.
- “Machine Intelligence and Mission Work”, Adventist Review, ~1996–1997 (edição não confirmada).
- “Electronic Evangelism or Automated Evangelism?”, Lake Union Herald, 1999.
- “Artificial Intelligence and Intelligent Design” (Eric Scott), Andrews University Seminary Studies, 2011.
- “Inteligencia artificial: ¿Herramienta u obstáculo? El ejemplo de Samuel” (Marcelo Díaz e Wagner Kuhn), Ministério, jan.-fev. 2016. Disponível em Ministério Pastoral
- “Inteligência artificial” (reportagem), Revista Adventista, 2020, por Márcio Tonetti. Link
- “Preaching the Gospel in Times of Artificial Intelligence” (Felipe Lemos), Adventist Review, ago. 2023. Link
- “A Inteligência Artificial e o cristão: Desafios e oportunidades para a igreja” (William E. Timm), Revista Adventista, 2023. Link
- Editorial de Juliana Muniz, Adventist Record, 6/abr/2024. Link
- “Ministry”, fev. 2024, artigo de Christopher K. Mukuka. Link



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