Entendendo a “Ansiedade do Arrebatamento”
Ansiedade do Arrebatamento (em inglês, Rapture Anxiety) refere-se a um fenômeno psicológico de medo avassalador relacionado à crença no arrebatamento, o evento escatológico em que, segundo algumas teologias cristãs, Jesus Cristo retornaria para levar os fiéis ao céu antes de um período apocalíptico na Terra[1].
Nessa doutrina, frequentemente associada ao cristianismo evangélico fundamentalista, os “justos” ascenderiam aos céus em um piscar de olhos, enquanto os demais seriam deixados para trás para enfrentar caos e tribulação.
Apesar de popular em certos grupos, é importante notar que se trata de uma interpretação relativamente recente, surgida no século XIX, não sendo unanimemente aceita por todas as denominações cristãs[1]. Igrejas tradicionais, como a Católica e a Ortodoxa, e protestantes históricos como os Adventistas, geralmente não pregam um arrebatamento secreto e iminente, vendo essa ideia como um ensino marginal ligado ao dispensacionalismo premilenar[2].
Para muitos crentes, a expectativa de um reencontro com Cristo deveria ser fonte de esperança e consolo espiritual. No entanto, para outros, especialmente jovens que cresceram em ambientes religiosos extremistas e muito focados no Apocalipse, essa expectativa assume contornos sombrios.
Crianças e adolescentes expostos a pregações sensacionalistas frequentes sobre o fim dos tempos, por exemplo, relatam terrores noturnos e pânico real: há casos de jovens que, ao acordarem e encontrarem a casa excepcionalmente silenciosa, entraram em desespero achando que o arrebatamento ocorrera e eles haviam sido abandonados por Deus[4][3]. Muitos passaram a infância chorando de medo ao imaginar familiares e até animais de estimação sendo levados enquanto eles ficariam para trás, atormentados pela ideia de terem cometido algum pecado imperdoável[3].
Do ponto de vista psicológico, especialistas reconhecem a ansiedade do arrebatamento como um tipo de trauma religioso crônico que pode acompanhar o indivíduo pela vida adulta[5].
O bombardeio constante com narrativas de julgamento final e imagens vívidas de destruição pode resultar em sintomas que espelham transtornos de ansiedade e estresse pós-traumático. O presidente de um centro de pesquisa religiosa entrevistado pela CNN descreveu esse fenômeno como “real e problemático”, indicando que pode levar a alta ansiedade, depressão, paranoia e até comportamentos obsessivo-compulsivos – por exemplo, a pessoa sentir necessidade de orar repetidamente pela salvação ou de confessar faltas o tempo todo, em resposta a um temor constante do juízo divino[6].
Em suma, a fé se transforma em medo, e a linha entre zelo espiritual e sofrimento mental torna-se tênue.







Profecias virais: o caso Joshua Mhlakela em 2025
No segundo semestre de 2025, esse medo apocalíptico latente ganhou força global graças a uma profecia viral. O pastor evangélico sul-africano Joshua Mhlakela afirmou ter recebido de Jesus, em sonhos, a revelação exata da data do arrebatamento[8]. Segundo ele, o evento ocorreria entre os dias 23 e 24 de setembro de 2025, coincidindo propositalmente com a festividade judaica de Rosh Hashaná (também chamada Festa das Trombetas) – detalhe que Mhlakela interpretou como confirmação simbólica da veracidade de sua visão. Em entrevista a um canal religioso no YouTube, o pregador declarou com convicção “o arrebatamento está às portas, quer vocês estejam prontos ou não”, chegando a afirmar que tinha “1000% de certeza” do cumprimento da profecia em setembro[9][10].
A princípio restrita ao círculo de fiéis que acompanham Mhlakela, a previsão se espalhou rapidamente pelas redes sociais, desencadeando pânico e debates fervorosos em escala internacional.
No TikTok, a hashtag #RaptureTok explodiu em popularidade, agregando centenas de milhares de vídeos de usuários discutindo a iminente data apocalíptica[11]. Nas semanas que antecederam o suposto dia do juízo, multiplicaram-se testemunhos emocionados de pessoas convencidas de que o fim estava próximo, bem como conteúdo satírico de quem via tudo com ceticismo.
Em alguns lugares, pequenos grupos realizaram vigílias e correntes de oração especiais, preparando-se espiritualmente para “encontrar o Senhor nos ares”. Histórias compartilhadas online indicam que alguns crentes tomaram medidas drásticas diante do alerta – houve quem pedisse demissão do emprego, se desfizesse de bens materiais (vendendo carros, casas) e cancelasse planos de longo prazo, tudo na expectativa de um mundo que “literalmente acabaria” em questão de dias[12][13].
Clipes viralizados mostram indivíduos entregando cartas de renúncia no trabalho e colocando seus pertences à venda; alguns chegaram a sacar economias da aposentadoria, movidos pela crença de que não estariam mais aqui para utilizá-las[13]. Essa mobilização lembra episódios históricos, como em 2011, quando seguidores do radialista Harold Camping também largaram tudo acreditando em uma data marcada para o arrebatamento e depois enfrentaram arrependimento quando nada aconteceu[14].
Por outro lado, a profecia de Mhlakela também gerou reações de humor e descrença. Usuários do TikTok postaram esquetes cômicos encenando cenários pós-arrebatamento, por exemplo, filmagens de roupas vazias deixadas em cadeiras ou calçadas, aludindo ao sumiço repentino dos “arrebatados”[15]. Memes circularam perguntando “será que os pets serão arrebatados ou deixados para trás?”, e dicas jocosas como “use sua melhor roupa de baixo no dia 23, just in case” ganharam tração[15].
Ao mesmo tempo, muitos internautas questionaram a veracidade da predição, apontando a falta de evidências concretas e relembrando o histórico de inúmeros anúncios falhados do fim do mundo ao longo das décadas[16]. Essa dualidade – pânico genuíno em alguns, e sarcasmo em outros – evidenciou a profunda influência das redes: elas amplificaram a profecia a tal ponto que pessoas de diferentes países, culturas e credos acabaram expostas à mensagem apocalíptica.
A comoção atingiu um patamar tão elevado que líderes religiosos e veículos de imprensa tradicionais se viram obrigados a intervir. Pastores de diversas denominações cristãs utilizaram seus sermões e perfis online para desmentir a previsão, citando passagens bíblicas (como Mateus 24:36) que afirmam que “quanto ao dia e à hora ninguém sabe”.
Teólogos e estudiosos em entrevistas destacaram que marcar datas para o fim dos tempos contraria os próprios ensinamentos de Jesus e faz parte de uma interpretação controversa dentro do cristianismo[17].
De fato, pesquisas indicam que embora boa parte dos líderes evangélicos creia na segunda vinda de Cristo, muitos reconhecem que a noção de um arrebatamento com data marcada é contestada e vista como sensacionalista, mesmo entre pessoas de fé[18].
Jornais, redes de TV e sites de notícia passaram a cobrir o fenômeno – ora com tom informativo, ora crítico entrevistando especialistas em comunicação, psicologia e ciências da religião. Esses especialistas alertaram para o perigo de acreditar e compartilhar previsões apocalípticas não verificadas, enfatizando que o uso de símbolos religiosos para espalhar alarmismo pode causar pânico coletivo desnecessário e confusão[19].
No fim, como era de se esperar, os dias 23 e 24 de setembro de 2025 vieram e se foram sem nenhum arrebatamento ou cataclismo global. A profecia de Joshua Mhlakela entrou para a já longa lista de previsões do fim do mundo que fracassaram em se cumprir[20].
Passado o susto, restaram diversas lições e reflexões: por que tantas pessoas foram impactadas por uma declaração de um desconhecido? Como um vídeo de poucos minutos desencadeou demissões, vendas de patrimônio e temor genuíno em gente comum ao redor do globo? Para responder a isso, é preciso entender as dinâmicas da era digital, onde notícias (sejam elas verdadeiras ou falsas) se espalham com velocidade e alcance inéditos.
Como notícias apocalípticas viralizam? Mídia digital e teorias da comunicação
No atual ecossistema informacional, boatos apocalípticos encontram um terreno especialmente fértil para se disseminar. Alguns conceitos da área de comunicação ajudam a explicar fenômenos virais como o caso Mhlakela:
- Agenda-setting digital: A teoria do agenda-setting postula que os meios de comunicação não dizem o que pensar, mas influenciam sobre o que as pessoas pensam. Nas redes sociais, esse efeito se torna descentralizado: quando um tema ganha impulso, por exemplo, uma profecia de fim do mundo , ele rapidamente entra na pauta coletiva. Milhões de usuários comentando e compartilhando o mesmo assunto forçam até a grande mídia a noticiá-lo, legitimando-o ainda mais. [20]. Em outras palavras, a viralização online pautou a mídia tradicional, que por sua vez ampliou o alcance do tema.
- Pânico moral nas redes: Pânico moral é um conceito da sociologia que descreve uma onda de preocupação pública desproporcional, desencadeada pela crença de que algo ou alguém ameaça gravemente a sociedade. Essas ondas de medo sempre existiram, mas as plataformas digitais atuam como combustível poderoso para elas. A viralidade funciona como um sinal psicológico de alerta: estudos mostram que conteúdos muito compartilhados tendem a ser vistos como mais críveis ou urgentes pelo simples fato de estarem “bombando”[21]. Assim, quando um vídeo apocalíptico acumula curtidas e reproduções, ele sinaliza aos usuários que “muita gente está preocupada com isso”, induzindo mais pessoas a se preocuparem também. Cria-se um ciclo de feedback: a alta visibilidade gera comoção e sentimentos de ameaça, o que leva a novos compartilhamentos carregados de medo ou indignação, retroalimentando o alcance da mensagem[22]. O pânico moral digital se alastra em horas ou dias, muito mais rápido do que no passado, justamente pela conexão instantânea entre milhares de indivíduos online.
- Redes sociais, algoritmos e “bolhas”: As mídias sociais operam por algoritmos que mostram ao usuário aquilo com que ele mais interage. Isso cria frequentemente “bolhas” de conteúdo – comunidades virtuais nas quais ideias similares se propagam sem contraponto. Se uma pessoa costuma consumir vídeos de teor religioso-apocalíptico, é bem provável que, ao surgir uma nova previsão de fim do mundo, o algoritmo do TikTok ou do YouTube entregue esse conteúdo a ela imediatamente, muitas vezes repetidamente. Grupos de discussão dedicados a profecias ou religião amplificam ainda mais a mensagem dentro de nichos específicos. As plataformas amplificam em pouco tempo essas mensagens, permitindo que teorias conspiratórias ou notícias sensacionalistas alcancem audiências enormes e diversificadas[23]. Especialmente entre os mais jovens, que passam muitas horas online, a exposição contínua a conteúdos de teor apocalíptico pode normalizar a ideia de um fim do mundo iminente, sem que haja uma análise crítica ou verificação dos fatos. É a tempestade perfeita: algoritmos promovendo o conteúdo, comunidades engajadas discutindo e nenhum gatekeeper (editor ou especialista) para frear a desinformação no calor do momento.
Conclusão
Em síntese, notícias apocalípticas viralizam porque mexem com emoções humanas universais do medo do desconhecido, fascínio pelo mistério, esperança de salvação e porque o meio digital potencializa essas emoções através da conectividade em massa.
Por fim, casos como o do “arrebatamento de 2025” trazem um alerta importante. Vivemos numa era em que fé e tecnologia se entrelaçam: uma crença religiosa pode ganhar eco global via algoritmos, e uma angústia pessoal pode transformar-se em movimento social via hashtags. Para jovens, educadores e comunidades de fé, fica o desafio de equilibrar a espiritualidade com pensamento crítico e informação de qualidade. [24].
Referências Bibliográficas
- GIATTI, Ian M. CNN warns of “rapture anxiety,” claims ex-Christians struggle with “trauma” over End Times teaching. The Christian Post, 29 set. 2022. Disponível em: https://www.christianpost.com/news/cnn-warns-of-rapture-anxiety-religious-trauma-over-teaching.html. Acesso em: 24 set. 2025.
- GOMES, Joice. Pastor sul-africano afirma que o mundo acaba hoje e causa alvoroço nas redes sociais. Terra, 23 set. 2025. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/pastor-sul-africano-afirma-que-o-mundo-acaba-hoje-e-causa-alvoroco-nas-redes-sociais,7f339bb71e34d9a04f4e8b31242fbd4fyq7mzgbc.html. Acesso em: 24 set. 2025.
- KARA-YAKOUBIAN, Mane. Virality on social media intensifies moral panics, according to new study. PsyPost, 18 mar. 2024. Disponível em: https://www.psypost.org/2024/03/virality-on-social-media-intensifies-moral-panics-according-to-new-study-149349. Acesso em: 24 set. 2025.
- SHUKLA, Piyush. World ending tomorrow? People are quitting jobs and selling cars in panic. The Economic Times (online), 23 sept. 2025. Disponível em: https://economictimes.indiatimes.com/news/international/us/world-ending-tomorrow-people-are-quitting-jobs-and-selling-cars-in-panic-joshua-mhlakela-rapture-prophecy-sparks-panic. Acesso em: 24 set. 2025.
- WILLINGHAM, A. J. For some Christians, “rapture anxiety” can take a lifetime to heal. CNN (online), 27 set. 2022. Disponível em: https://www.cnn.com/2022/09/27/us/rapture-anxiety-evangelical-exvangelical-christianity-cec/index.html. Acesso em: 19 dez. 2023.
[1] [8] [16] [17] [18] [19] [20] [23] [24] Pastor sul-africano afirma que o mundo acaba hoje e causa alvoroço nas redes sociais
[2] [3] [4] [5] [6] CNN warns of ‘rapture anxiety,’ ‘religious trauma’ over teaching | Living
https://www.christianpost.com/news/cnn-warns-of-rapture-anxiety-religious-trauma-over-teaching.html
[7] Rapture anxiety – Wikipedia
https://en.wikipedia.org/wiki/Rapture_anxiety
[9] [10] [15] Pastor’s prophecy of Sept. 23 Rapture sparks frenzy on ‘RaptureTok’
https://www.ksla.com/2025/09/23/pastors-prophecy-sept-23-rapture-sparks-frenzy-rapturetok/
[11] [12] [13] [14] Joshua Mhlakela world ending prophecy: World ending tomorrow? People are quitting jobs and selling cars in panic – The Economic Times
[21] [22] Virality on social media intensifies moral panics, according to new study
OpenAI. (2025). ChatGPT (versão de 24 de setembro) [GPT 5.0 Pro]. https://chat.openai.com/chat




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