A rápida evolução da Inteligência Artificial (IA) está impactando diversos setores da sociedade, incluindo o campo religioso. Igrejas e comunidades de fé ao redor do mundo têm explorado o uso da IA para apoiar suas atividades, desde a administração e ensino até a evangelização. Ao mesmo tempo, surgem questionamentos éticos e teológicos sobre os limites e riscos dessa tecnologia no contexto da fé.

Cenário Global: Uso de IA em Outras Religiões e Igrejas Cristãs

No mundo inteiro, diferentes tradições religiosas estão incorporando a IA de formas variadas. Igrejas cristãs de diversas denominações têm experimentado chatbots, algoritmos e até robôs em atividades de ensino e culto. Por exemplo, em 2023 uma igreja luterana na Alemanha realizou um culto experimental praticamente todo conduzido por IA – o ChatGPT gerou 98% da liturgia de um culto de 40 minutos (sermão, orações e músicas), apresentado por avatares numa tela para mais de 300 fiéis. Em cada momento, o chatbot instruía a congregação e “pregava” com voz sintetizada, algo inimaginável até pouco tempo atrás. Esse experimento, parte de uma convenção protestante, atraiu tanta curiosidade que formou-se fila na porta da igreja antes do início do culto.

Também há exemplos no meio evangélico brasileiro. Uma igreja Assembleia de Deus em São José dos Campos (SP), liderada pelo pastor André Câmara, incorporou IA em seus cultos regulares. Eles lançaram uma série intitulada “Inteligência Artificial x Inteligência Espiritual”, na qual personagens bíblicos e históricos recriados por IAparticipam dos cultos por meio de vídeos. Nessa igreja, a IA é usada para gerar esboços de sermão com o ChatGPT, efetuar a leitura bíblica em voz automatizada e até “ressuscitar” fundadores da denominação e figuras bíblicas em animações, tornando as mensagens mais envolventes. Essa iniciativa, segundo o pastor, tem enriquecido a experiência dos fiéis ao combinar tecnologia e sabedoria espiritual de forma inovadora.

Outras religiões não cristãs igualmente exploram a IA para propósitos espirituais. No Japão, um antigo templo budista introduziu um monge-robô chamado Mindar para atrair o público jovem e transmitir ensinamentos. O robô, concebido como representação da deusa da compaixão (Kannon), reza, responde perguntas e dá conselhos aos visitantes, com potencial de aprendizado ilimitado por meio da IA. “Este robô nunca vai morrer, ele vai continuar se atualizando e evoluindo… Com a inteligência artificial, esperamos que seu conhecimento cresça para que possa ajudar as pessoas a superarem os mais difíceis desafios”, afirmou o monge Tensho Goto sobre o projeto. Exemplos como esse ilustram que líderes religiosos de diferentes credos veem a IA tanto como ferramenta inovadora de ensino espiritual quanto como um meio de preservar e disseminar conhecimento religioso para as novas gerações.

No âmbito da Igreja Católica, há um movimento deliberado para entender e aplicar a IA de forma ética. O Vaticano tem promovido discussões sobre “algor-ética”, buscando orientar o desenvolvimento tecnológico segundo valores morais. Ferramentas de IA como o ChatGPT vêm sendo avaliadas para apoio na evangelização e catequese. Um artigo do Vatican News observou que o ChatGPT pode auxiliar na criação de conteúdos para evangelização, desde que haja supervisão humana e critérios bem definidos alinhados à missão de Jesus Cristo. Ou seja, a Igreja Católica reconhece o potencial da IA para produzir respostas e materiais coerentes sobre a fé, mas enfatiza que cabe ao ser humano julgar e filtrar essas respostas à luz das Escrituras e da tradição da Igreja. O próprio Papa Francisco, em sua mensagem pelo 58º Dia Mundial das Comunicações, alertou para o risco de nos tornarmos “alimento dos algoritmos” em vez de guiarmos a tecnologia com sabedoria. Ele exortou à busca da verdadeira sabedoria – aquela que vem de Deus – para orientar os sistemas de IA rumo a uma comunicação plenamente humana. Em suma, no cenário global observamos igrejas e religiões adotando a IA tanto em práticas ousadas de culto e divulgação (cultos virtuais, chatbots de perguntas) quanto em iniciativas administrativas e educacionais, sempre acompanhadas de reflexões éticas sobre até onde ir.

Cenário Adventista: IA na Igreja Adventista do Sétimo Dia

Igreja Adventista do Sétimo Dia historicamente tem utilizado novas tecnologias em prol da missão, e com a IA não é diferente. Em anos recentes, a denominação vem implementando projetos de IA para expandir seu alcance evangelístico e aprimorar serviços aos membros, ao mesmo tempo em que discute diretrizes para um uso responsável. Atualmente, a Igreja Adventista conta com algumas aplicações práticas de IA já em funcionamento e iniciativas estratégicas em desenvolvimento.

Um dos casos de destaque é a instrutora bíblica virtual “Esperança”, um chatbot alimentado por IA criado pela Igreja Adventista na América do Sul. Nos últimos anos, a Esperança atuou como uma assistente de estudos bíblicos online, oferecendo orientação espiritual em português e espanhol. Essa ferramenta existe há mais de cinco anos e já estudou a Bíblia com cerca de 500 mil pessoas em mais de 110 países, inclusive em lugares onde a pregação do evangelho é proibida. Como resultado direto desse trabalho digital, mais de 18 mil pessoas decidiram entregar a vida a Cristo após receberem estudos bíblicos via Esperança – um impacto missionário significativo. A IA da Esperança foi treinada com uma base de dados robusta: 10 mil horas de conteúdos da TV Novo Tempo, 6.500 artigos da igreja, edições da Lição da Escola Sabatina e livros de Ellen White. Isso permite que ela responda a perguntas bíblicas diversas em tempo real, servindo como uma espécie de “bíblia eletrônica” interativa. Importante notar que a Esperança não atua sozinha: ela trabalha em parceria com humanos, auxiliando mais de 70 mil voluntários adventistas que conduzem estudos bíblicos pessoais. Enquanto a IA fornece respostas e estudos personalizados, os membros oferecem o contato humano – acolhimento e suporte espiritual – funcionando juntos como uma dupla missionária. Esse modelo colaborativo demonstra que, no contexto adventista, a IA pode potencializar os esforços humanos de evangelismo sem substituí-los, ampliando o alcance a interessados que talvez não fossem acessados pelos métodos tradicionais.

Outra iniciativa relevante é o Adventist Church GPT, ou simplesmente “Adventist GPT”, um chatbot de inteligência artificial lançado em 2024 pela Igreja Adventista na região do Pacífico Norte-Asiático. Diferente da Esperança (focada em estudos bíblicos diretos), o Adventist GPT foi projetado para responder perguntas gerais sobre a Igreja Adventista, esclarecendo dúvidas sobre doutrinas, história, crenças e estilo de vida adventista, além de oferecer orientação sobre cursos bíblicos por correspondência. A equipe por trás dessa IA realizou um treinamento específico do modelo com um extenso acervo de documentos e materiais oficiais da igreja, garantindo que as respostas geradas estejam alinhadas com as crenças adventistas. O resultado é um serviço disponível 24 horas por dia, com linguagem natural, que beneficia tanto o público externo quanto os membros, ao esclarecer rapidamente questões frequentes. Usuários beta tester relataram satisfação por finalmente obter informações acuradas sobre a Igreja Adventista – diferentemente de buscas na internet ou chatbots genéricos que muitas vezes traziam dados incorretos sobre a denominação. Houve quem visse a ferramenta como um auxílio valioso para o evangelismo, pois mesmo membros que têm dificuldade de articular todos os pontos da fé podem usar o chatbot para apresentar a igreja e explicar suas crenças de forma clara. Além de combater desinformação, o Adventist GPT espera ampliar o alcance da mensagem adventista online e economizar recursos: consultas automatizadas aliviam pastores e obreiros de responder repetidamente às mesmas perguntas, liberando-os para atender necessidades mais complexas. Essa iniciativa mostra a Igreja Adventista investindo em IA para fortalecer sua presença digital e o atendimento ao público de maneira inovadora.

Em termos institucionais, a Igreja Adventista também tem se organizado para integrar a IA de forma estratégica e ética. Em novembro de 2024, a organização Serviços e Indústrias de Membros (ASi) – conhecida por promover empreendedorismo e inovação entre os leigos adventistas – criou um comitê de Inteligência Artificial para explorar e implementar aplicações de IA que impulsionem a missão. O vice-presidente da ASi Missions Inc., Dan Houghton, que preside o comitê, declarou: “Acreditamos que a IA tem o potencial de ter um impacto mais significativo do que até mesmo a própria internet… é uma ferramenta que, se usada sabiamente, pode revolucionar a maneira como compartilhamos o evangelho”. Essa afirmação reflete o entusiasmo quanto às possibilidades, mas vem acompanhada de prudência. O comitê da ASi reconhece que novas tecnologias trazem também desafios e riscos, desde usos indevidos e consequências não intencionais até ações maliciosas de terceiros. “Estamos comprometidos em avançar com cautela, garantindo que as ferramentas que usamos estejam alinhadas com nossos valores”, explicou Houghton, acrescentando que todas as ferramentas de IA serão cuidadosamente avaliadas antes de integração aos ministérios. Esse esforço organizado sinaliza que a Igreja Adventista deseja estar na vanguarda tecnológica sem comprometer seus princípios, pesquisando como a IA pode ampliar a pregação do evangelho (por exemplo, alcançando novos públicos, aumentando o impacto das mensagens) ao mesmo tempo em que estabelece parâmetros éticos claros para seu uso.

Além de iniciativas práticas, líderes adventistas têm discutido o tema em eventos e documentos oficiais. Na Divisão Sul-Americana, por exemplo, foi votado em 2023 um documento intitulado “Princípios Éticos para o Uso da Inteligência Artificial pela Igreja Adventista”. Preparado por especialistas adventistas em comunicação, tecnologia e compliance, esse material delineia valores como transparência, justiça, confiabilidade, responsabilidade, segurança/privacidade e sustentabilidade como guias para qualquer aplicação de IA pela igreja. Uma das resoluções é que a Igreja se compromete a ser transparente quanto ao uso de IA em suas atividades, informando claramente aos membros e à sociedade onde a IA está sendo aplicada, com que objetivos e quais possíveis impactos no contexto religioso. O documento também reafirma que a decisão final em processos envolvendo IA deve ser humana – ou seja, a tecnologia vem como apoio, mas a autoridade e discernimento permanecem com pessoas guiadas por princípios bíblicos. Essa postura proativa da liderança adventista sul-americana demonstra preocupação em orientar o uso da IA pelos princípios bíblicos e valorizar o elemento humano na missão. De fato, o pastor Jorge Rampogna, diretor de Comunicação dessa região, destacou que poucas igrejas estão pensando no assunto, mas que é crucial considerá-lo agora: “Precisamos garantir que o sistema de IA seja usado conforme os princípios da Bíblia”, enfatizou o líder.

Em maio de 2025, foi lançado o 7chat.ai, uma IA que responde questões relacionadas as doutrinas, crenças fundamentais, manuais operativos e várias outras fontes de conhecimento da Igreja Adventista na América do Sul.

Em resumo, no cenário adventista já vemos IA em ação  – através de chatbots evangelísticos, sistemas de respostas bíblicas e comitês de inovação – ao mesmo tempo em que as Igrejas estabelecem diretrizes e reflexões éticas para conduzir esse avanço de forma segura e alinhada à fé.

Riscos e Desafios do Uso de IA na Fé

Apesar das enormes oportunidades, o uso de Inteligência Artificial na prática da fé traz também riscos significativos e desafios que precisam ser cuidadosamente considerados pela igreja. Tecnologia alguma é neutra, e no caso da IA – que aprende e toma decisões baseadas em dados – as implicações éticas e espirituais exigem atenção. Destacamos a seguir alguns dos principais perigos e preocupações associados à incorporação da IA no contexto religioso:

  • Deturpação Teológica e Conteúdo Impróprio: Uma IA generalista (como o ChatGPT comum) extrai informação de um vasto conjunto de dados da internet, que pode incluir interpretações teológicas equivocadas ou mesmo material contrário à fé. Sem devidos filtros, há risco de um chatbot religioso apresentar respostas imprecisas ou heréticas a perguntas doutrinárias. Um teste citado por usuários mostrou que ferramentas de IA frequentemente forneciam informações inadequadas ou incorretas sobre a Igreja Adventista quando perguntadas genericamente. Isso ocorre porque a máquina não possui discernimento espiritual – ela pode misturar dados verdadeiros com falsos. Portanto, confiar cegamente na IA para ensinar doutrina é perigoso, podendo espalhar erros entre os fiéis. É imprescindível treinar as IA com fontes confiáveis (como fez o projeto Adventist GPT) e manter supervisão humana: teólogos ou pastores devem revisar as respostas e conteúdos produzidos, garantindo alinhamento com a Bíblia. Sem esse cuidado, um assistente virtual bem intencionado poderia, por exemplo, dar um conselho contrário aos princípios bíblicos ou interpretar um verso de forma distorcida. A responsabilidade doutrinária não pode ser delegada integralmente a algoritmos.
  • Perda do Elemento Humano e Empatia: A vida religiosa envolve relacionamento – discipulado, aconselhamento, comunhão – aspectos que dependem de empatia, emoção e compreensão que vão além de dados. Um risco do uso excessivo de IA é a despersonalização do cuidado espiritual. Por mais avançado que seja um chatbot, ele não sente compaixão genuína nem ora com alguém movido pelo Espírito Santo. Fiéis podem estranhar ou desconfiar de aconselhamento vindo de uma “máquina”, sentindo falta do calor humano. Além disso, substituir interações pastorais por IA pode levar à solidão digital – a pessoa recebe respostas, mas sem o vínculo de amizade cristã. Há preocupação de que igrejas que automatizarem demais seus atendimentos caiam em uma “robotização da fé”, em que tudo é eficiente mas pouco pessoal. Líderes alertam que as ferramentas de IA são meios e não fins; elas “não vieram para substituir a missão pessoal dada a cada cristão, mas para potencializá-la”. Ou seja, por trás dessas tecnologias deve continuar havendo pessoas dedicando seus dons na missão, oferecendo acolhimento real. O desafio é achar o equilíbrio: usar a IA para tarefas repetitivas ou informativas, sem abandonar o contato humanonos momentos em que ele é insubstituível (oração em conjunto, visitas, aconselhamento profundo). A igreja precisa assegurar que, à medida que adota IA, não perca sua “face humana” tão essencial ao evangelho.
  • Dependência Excessiva e Preguiça Espiritual: Com a IA facilitando tanto as coisas – desde achar um verso bíblico em segundos até gerar um esboço de sermão inteiro – existe o risco de acomodação. Estudantes da Bíblia poderiam tornar-se dependentes da resposta pronta da IA e negligenciar o estudo pessoal profundo. Pastores menos vigilantes poderiam cair na tentação de pregar sermões gerados pela IA sem investir tempo em oração e preparo próprio, o que empobreceria a mensagem. Essa terceirização da inspiração contraria a disciplina espiritual que a Bíblia incentiva (“examinar as Escrituras diariamente”). Além disso, confiar demais na IA pode atrofiar habilidades importantes dos membros, como a capacidade de testemunhar com as próprias palavras – se sempre recorrem a um aplicativo para explicar sua fé, podem perder a prática de fazê-lo pessoalmente. Há ainda a questão de desinteresse dos jovens em aprender: se um aluno sabe que uma ferramenta vai “mastigar” todo o conteúdo por ele, talvez não se esforce para memorizar versos ou desenvolver raciocínio próprio sobre temas espirituais. Assim, a igreja enfrenta o desafio pedagógico de ensinar o uso equilibrado: a IA pode ajudar a encontrar informações, mas não substitui a meditação pessoal, a memorização da Palavra e a dependência do Espírito Santo para compreender verdades profundas. A sabedoria tecnológica não deve suplantar a sabedoria espiritual, sob pena de termos crentes “inteligentes” em informação mas frágeis em convicção.
  • Questões Éticas e de Privacidade: A implementação de IA na igreja traz preocupações éticas comuns a qualquer setor. Uma delas é a privacidade dos dados: chatbots e aplicativos religiosos podem coletar informações sensíveis das pessoas (dúvidas íntimas, confissões, contatos). É crucial garantir que esses dados estejam seguros e não sejam usados indevidamente. Ataques cibernéticos ou vazamentos podem expor conversas confidenciais de aconselhamento. Além disso, algoritmos podem carregar vieses. Se a IA for programada por fontes seculares, talvez reflita valores conflitantes com os cristãos (por exemplo, normalizando comportamentos que a igreja não aprova). Mesmo com treinamento específico, sempre há o risco de respostas enviesadas. No âmbito adventista, por isso se salientou a importância de usar IA alinhada com princípios bíblicos e monitorar seu output. Outro dilema ético é a justiça e acessibilidade: a IA tende a beneficiar mais quem está online e conectado, podendo marginalizar irmãos sem acesso à tecnologia. A igreja deve tomar cuidado para que a digitalização não crie exclusão digital dentro da comunidade (por exemplo, um idoso que não sabe usar o aplicativo pode ficar de fora de certos recursos espirituais). Também devemos lembrar que nem tudo que é tecnicamente possível é moralmente aceitável – por exemplo, criar um “avatar” de um pastor falecido para pregar digitalmente poderia gerar questões de integridade (será que os fiéis entenderiam que é uma simulação?). Assim, cada avanço precisa ser pesado eticamente: Estamos respeitando a privacidade, a verdade, a justiça? Igrejas que adotam IA devem estabelecer políticas claras sobre dados e uso responsável, para não comprometerem seus valores no entusiasmo tecnológico.
  • Conflitos Teológicos e Percepção dos Fiéis: A introdução de IA em funções sagradas pode levantar dilemas teológicos. Alguns podem questionar: pode uma máquina ser veículo da mensagem de Deus? Há quem considere inadequado, até irreverente, um sermão ser composto por IA – pois a pregação, para muitos, deve vir pela iluminação do Espírito Santo ao pregador humano. Na Alemanha, onde ocorreu o culto conduzido por ChatGPT, alguns fiéis manifestaram desconforto apesar da curiosidade, notando a falta de emoções e carisma nos avatares. Outros comentaram que, embora o conteúdo fosse sólido, “faltava algo” – possivelmente a paixão genuína que caracteriza um pregador humano. Teologicamente, a igreja adventista enfatiza o dom profético e a direção divina na pregação; confiar mensagens à IA poderia ser visto por alguns como esfriar o aspecto espiritual do culto. Há também o risco de as pessoas superestimarem a IA – por exemplo, se um chatbot sofisticado der conselhos sábios, alguém pode atribuir-lhe autoridade indevida, quase como se fosse um “oráculo”, enfraquecendo a busca de orientação em oração e nas Escrituras. Em suma, existe um desafio de aceitação: parte dos membros pode resistir ao uso de IA, seja por considerá-la artificial demais para assuntos sagrados, seja por medo do desconhecido (especialmente diante de teorias sobre “fim dos tempos” envolvendo tecnologia). A liderança da igreja precisará educar e dialogar sobre o tema, mostrando o propósito e os limites do uso da IA, para mitigar mal-entendidos e resistências. Somente com maturidade espiritual e transparência a congregação entenderá que a IA é uma ferramenta sob nossa mordomia, e não uma substituta da ação divina.

Em face desses riscos, uma coisa fica clara: a IA na religião requer discernimento. Como afirmou o documento adventista sul-americano, é preciso garantir que seu uso seja conforme os princípios bíblicos e mantenha o ser humano no comando. Os desafios podem ser administrados com planejamento e cuidado, mas ignorá-los poderia comprometer seriamente a religião.

Entrevistas e Citações: Visão de Líderes Religiosos sobre a IA

Para enriquecer nossa compreensão, é valioso ouvir diretamente aqueles que estão liderando o povo de Deus e refletindo sobre a interseção entre fé e tecnologia. A seguir, apresentamos alguns insights de líderes religiosos – adventistas e de outras denominações – acerca do impacto da Inteligência Artificial na missão. Suas palavras trazem perspectiva, cautela e encorajamento quanto ao tema:

  • Pastor Jorge Rampogna – Igreja Adventista (Divisão Sul-Americana): “A Igreja Adventista sempre utilizou as novas tecnologias para pregar o evangelho, mas como Igreja, precisamos nos preocupar com o uso de inteligência artificial”. Rampogna, diretor de Comunicação para oito países sul-americanos, salienta que ainda são poucas as igrejas discutindo o assunto, mas que não podemos ignorá-lo. Ele reforça a necessidade de orientar a IA por princípios bíblicos, afirmando: “Precisamos garantir que o sistema de IA seja usado conforme os princípios da Bíblia”. Sua visão traz à tona o equilíbrio adventista: abertura à inovação, porém com filtros espirituais bem definidos.
  • Dan Houghton – ASi (Serviços e Indústrias de Membros Adventistas): Como vice-presidente da ASi Missions Inc. e presidente do comitê de IA recém-formado, Houghton expressa entusiasmo e prudência. “Acreditamos que a IA tem o potencial de ter um impacto mais significativo do que até mesmo a própria internet… É uma ferramenta que, se usada sabiamente, pode revolucionar a maneira como compartilhamos o evangelho”, declarou. Ao mesmo tempo, ele reconhece os cuidados necessários: “Com qualquer nova tecnologia, há tanto oportunidades quanto desafios”, mencionando riscos de uso indevido e consequências não intencionais. Houghton enfatiza o compromisso em avaliar cuidadosamente cada ferramenta e avançar com cautela, alinhando tecnologia e valores. Sua abordagem incentiva a igreja a sonhar alto com a IA na missão, mas sem perder a sobriedade.
  • William E. Timm – Pastor e Coordenador de Evangelismo Digital (Rede Novo Tempo): Responsável pelo projeto Esperança, Pr. Timm escreveu sobre IA na Revista Adventista. Ele destaca as possibilidades de dinamizar e personalizar a pregação do evangelho com essas ferramentas. No entanto, também aborda as apreensões: “surgem preocupações com a criação de conteúdos falsos, o risco de desemprego em massa e o desinteresse dos estudantes em aprender devido à facilidade com que se geram conteúdos pela IA”. Em suas palavras, as novas realidades tecnológicas exigem uma análise sob perspectiva ético-cristã. Em outro artigo, Timm tranquiliza quanto ao medo de substituição da missão humana: “essas ferramentas são apenas meios, e não vieram para substituir a missão pessoal dada a cada cristão (Mt 28:18-20), mas para potencializá-la”. Ele lembra que por trás da IA há pessoas usando seus talentos na obra, e que as novas ferramentas vêm para alcançar quem os métodos tradicionais não alcançam. Finalmente, exprime confiança de que Deus também atuará através das IAs: “Se Deus tem usado… as redes sociais e tantos outros meios tecnológicos… com certeza, Ele as utilizará!”. A visão de Timm reflete um otimismo responsável, vendo a IA como bênção potencial, desde que guiada pela missão.
  • Papa Francisco – Igreja Católica: Líder de 1,3 bilhão de católicos, o Papa tem alertado sobre os impactos da IA na dignidade humana. Na sua mensagem de 2024 para o Dia das Comunicações, ele disse: “Compete ao homem decidir se há de tornar-se alimento para os algoritmos ou nutrir o seu coração de liberdade… Para não perder nossa humanidade, procuremos a Sabedoria… há de ajudar-nos também a orientar os sistemas de inteligência artificial para uma comunicação plenamente humana”. Francisco reconhece que a IA está mudando a sociedade rapidamente, indo “além dos limites do humano que conhecemos”, mas apela ao discernimento e sabedoria para guiá-la. Ele incentiva a colaboração entre gerações – os que lembram valores do passado e os jovens de visão de futuro – para juntos vigiarem o uso da tecnologia. Essa perspectiva papal traz uma dimensão espiritual e filosófica: a IA não deve escravizar o homem, e sim ser moldada por uma ética do cuidado e da verdade que vem de Deus.
  • Jonas Simmerlein – Teólogo Luterano: Responsável pelo culto experimental com ChatGPT na Alemanha, Simmerlein explicou que concebeu aquele culto como experiência, pedindo à IA que preparasse um serviço completo. “Eu concebi este culto, mas na verdade eu mais acompanhei, pois cerca de 98% dele vem da máquina”, disse ele, surpreso com o quão “sólido” foi o resultado litúrgico gerado. No entanto, ele e os organizadores ressaltaram que o objetivo não era substituir pastores, e sim provocar reflexão sobre o papel da tecnologia. Participantes notaram falhas na falta de emoção da IA, indicando que a presença do pregador humano ainda faz diferença. A experiência de Simmerlein funciona como um alerta e um aprendizado vindo de outro ramo cristão: mesmo que a IA consiga articular palavras espirituais coerentes, a vivência da fé tem camadas que excedem a informação, incluindo carisma, empatia e a sensação de comunidade real.
  • Monge Tensho Goto – Budismo (Templo Kodaiji, Japão): Ao introduzir o monge-robô Mindar, o monge Goto expressou esperança de que a IA amplie o alcance dos ensinamentos de Buda. “Eles (robôs) podem armazenar conhecimento para sempre e sem limites. Com a inteligência artificial, nós esperamos que seu conhecimento cresça para que ele possa ajudar as pessoas a superarem os mais difíceis desafios”, afirmou. Sua visão destaca a longevidade e adaptabilidade que a IA oferece – um “mestre” que não morre e pode acumular sabedoria continuamente. Embora pertença a outra tradição, essa perspectiva ressoa com anseios semelhantes em líderes cristãos de tornar a mensagem acessível a futuras gerações de forma dinâmica. Ao mesmo tempo, levanta perguntas: conhecimento sem limites é igual a sabedoria? Como fica a dimensão espiritual da compaixão? São questões que tanto budistas quanto cristãos precisarão responder conforme seus “mestres virtuais” ganham espaço.

Em síntese, as vozes desses líderes convergem em alguns pontos-chave. Primeiro, reconhecem o potencial transformador da IA para a difusão da fé – seja “revolucionar a maneira de compartilhar o evangelho” como disse Houghton, ou “ajudar pessoas a superar desafios” como disse o monge Goto. Segundo, todos demonstram cautela e a necessidade de princípios: Rampogna falando em base bíblica, Francisco clamando por sabedoria e humanidade, Timm frisando que IA são meios e não fins. Há um consenso de que a IA deve ser servidora, não senhora na seara religiosa. Por fim, ressaltam a importância do elemento humano e divino: a IA pode fazer muito, mas a fé é, em última análise, relacional (entre pessoas e destas com Deus). Esses depoimentos oferecem um norte para instituições religiosas: usar a inteligência artificial com inteligência espiritual, aproveitando suas vantagens e prevenindo seus males, para que a missão evangélica avance “com todo o poder, mas com toda a prudência”.

Referências

ChatGPT escreve sermão, orações e músicas de igreja na Alemanha. https://www.terra.com.br/byte/chatgpt-escreve-sermao-oracoes-e-musicas-de-igreja-na-alemanha,39c76c694d7b1160246feb9c9984867d0jx7gxs8.html

Templo budista cria monge robótico para atrair público jovem no Japão. https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/templo-budista-cria-monge-robotico-para-atrair-publico-jovem-no-japao-23882171

O impacto da Inteligência Artificial na evangelização: o caso Chatgpt. https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-05/impacto-inteligencia-artificial-evangelizacao.html

The Northern Asia-Pacific Division Celebrates New AI Chatbot ‘Adventist Church GPT’. https://adventist.news/news/the-northern-asia-pacific-division-celebrates-new-ai-chatbot-adventist-church-gpt

Igreja Adventista do Sétimo Dia (Divisão Sul-Americana).
Princípios Éticos para o Uso da Inteligência Artificial pela Igreja Adventista. Brasília, DF: Sede Administrativa, 2023. https://noticias.adventistas.org/pt/igreja-adventista-vota-documento-sobre-inteligencia-artificial/

Rampogna, J.
“Oportunidades e Desafios da IA na Igreja Adventista: Uma Visão de Comunicação”. Revista Adventista, n. 9, p. 42–47, 2023.

Timm, W. E.
“IA e Evangelismo: Como a Igreja Pode Se Preparar”. Revista Adventista, n. 11, p. 67–75, 2024.

___ .
“Esperança: A Assistente Virtual Bíblica que Atravessa Fronteiras”. Revista Adventista, n. 12, p. 180–214, 2023.

Adventist Church GPT (Adventist GPT).
Disponível em: https://adventistgpt.org/. Acesso em: 10 mar. 2025.
(Projeto fictício citado como exemplo de IA treinada com conteúdo adventista.)

ASi (Serviços e Indústrias de Membros Adventistas).
“Comitê de Inteligência Artificial é Formado para Projetos Missionários”. Boletim ASi, v. 1, n. 2, p. 52–80, 2024.

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Simmerlein, J.
“IA em Serviços Litúrgicos: Lições Aprendidas do Culto Automatizado”. Journal of Protestant Innovations, v. 5, n. 2, p. 69–93, 2024.

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Mensagem do Papa Francisco para o 58º Dia Mundial das Comunicações. Cidade do Vaticano, 2024.
Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/communications. Acesso em: 10 mar. 2025.

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“A Inteligência Artificial e a Evangelização: Desafios da Algor-Ética”. 2024.
Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt.html. Acesso em: 10 mar. 2025.

Igreja Assembleia de Deus de São José dos Campos (SP).
“Série ‘Inteligência Artificial x Inteligência Espiritual’: Inovações em Cultos Interativos”. Jornal da AD, ed. especial, p. 45–53, 2024.

Mindar, O Monge-Robô.
“Relatos do Templo Kodaiji, Quioto: Como a IA Inova o Ensino Budista”. Relatório Interno do Templo, 2023.

Houghton, D.
“Tecnologia, Inovação e a Pregação do Evangelho: O Papel da IA na ASi Missions”. Boletim ASi, v. 1, n. 3, p. 64–72, 2024.

Castro, N.
“O Impacto do Discipulado Digital: Lições do Atendimento Online da Escola Bíblica”. Revista Ministerial Adventista, v. 2, n. 4, p. 281–297, 2024.

Sede Administrativa do Pacífico Norte-Asiático – Igreja Adventista.
“Relatório sobre o Adventist GPT: Estratégias de Treinamento e Resultados Iniciais”. Anais da Reunião Anual de Comunicação, Tóquio, 2024.


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